“até
ao esgotamento das horas“

Alfredo Margarido 2006

O Caricaturista que agora se diz “cartoonista”, para nos separar do passado do Rafael Bordalo Pinheiro ou de Celso Hermínio, não renuncia à acutilância: como poderia ele fazê-lo, sem pôr em causa a sua própria missão? Pois não é ele o delegado do juízo público, que ao escolher está já em via de criticar, primeira fase da necessária rejeição? E não será a política a cena onde são sacrificados não só os ingénuos com os perversos? Não se pode falar aqui em heteronomia, já que Fernando Pessoa nos proíbe o recurso à fórmula. Imaginem, todavia, que me permitia o luxo de salientar que Vasco de Castro é um autor heteronímico, onde coabitam o escritor, o analista da própria criação plástica, o caricaturista (podem dizer cartoonista, se tal preferirem) e o pintor. É este último o menos conhecido, o que não podemos deixar de lamentar, tão verdade é que a personalidade complexa de Vasco de Castro sempre girou em volta da pintura. Seria demasiado vulgar chamar à colação um jovem aluno da Faculdade de Direito de Lisboa que começou a desenhar, com algum lirismo, as paisagens e a cidades? Tratava-se da primeira fase do criador: o jovem Agostinho de Castro ainda não descobrira a Europa, e não sabia que Agostinho não é nome com que se possa circular honestamente nos países que recusam o percurso, normal entre nós, aos hipocorísticos. O Vasco de Castro assume já a segunda fase da metamorfose, e propõe-se um pintor perfeito.

De resto, e como não podia deixar de ser, Vasco foi obrigado a repensar a fórmula de Lenardo(“ a pintura é coisa mental”), para descobrir que este aforismo não continha a totalidade do esforço violento da pintura, que passa necessariamente pelo corpo. Pelos músculos, pela mão. O século XIX aprendeu com os orientais, mas também com os “não civilizados”, que não há produção plástica que não passe pelo corpo.

A proposta plástica de Vasco passa por isso por uma recomposição das lições plásticas, dado não poder contar com uma tradição nacional à qual possa referir-se, sempre que for necessário pensar o mundo em termos plásticos. Como aconteceu à sua geração, quer dizer a minha, Vasco de Castro aprendeu plasticamente o mundo pela via surrealista. Não a via doméstica, sempre sombreada pelo fantasma do aburguesamento, dessa corrente criadora, mas sim pela via mais ampla: a do estrangeiro e mais particularmente a de Paris. Não será aqui o momento de sublinhar a importância decisiva desse longo instante, tanto mais que Vasco de Castro já contou uma parte, num estilo terso e apropriado no Montparnasse, mon village. Neste caso, convém pôr em evidência um dos factores essenciais desta pintura, que a inscreve numa genealogia plástica específica, que se caracteriza pelo recurso constante às “infracções cromáticas”, que reforçam a violência da ruptura com os tratamentos plásticos da história da pintura ocidental.

Ora, como vão ver a solidez da relação de parentesco entre Degas, Gauguin, Van Gogh, fauves, surrealistas – e mais particularmente um homem como Juan Miró – e agora este transmontano metamorfoseado em sintrense que é Vasco de Castro? A relação entre a coisa mental e a coisa física é constante. Nem podia ser de outra maneira: não há nada mais físico do que esta relação com a tela, com as cores, que se trabalham com a mão, com os dedos, com os pincéis, que não são mais do que instrumentos humanizados. Esta revolução cromática não poderia ter razão de ser se não apoiasse em outras zonas complexas da criação: não é Vasco de Castro um pintor que oscila entre a face visível e o orgânico invisível, escondido do olhar ela densidade da pele? No que se refere à face, encontramo-lo não perante o retrato, mas sim perante uma interrogação mais vasta, que não perde a sua relação com o fisiognomonia: pôr em evidência a própria estrutura da personalidade, que o rosto revelaria opondo-se ao desejo de ocultação do retratado. A armadilha plástica está assim definida, sabendo-se que a consciência e impenetrável e irrepresentável. Mas que fazer, senão insistir, repetir o mesmo movimento, tentar devolver sentido e orelhas aos que as perderam? Por isso, sem devolver sentido e orelhas aos que as perdera? Por isso, sem nenhuma nostalgia, Vaso de Castro se lança na operação complementar, que consiste em representar o orgânico, ou antes, o seu sentido.  As operações mais extremas e mais complementares encontram o terreno comum da pintura: o orgasmo e a defecação. Não foram os beduínos que explicaram, já no século XV, que convinha tapar a boca porque esta, idêntica ao ânus, era um lugar de mau cheiro?  Espera-se da boa educação beduína, e as outras não podiam deixar de seguir este rasto, que o homem tape a boca, eliminando o mau cheiro. A pintura só tem razão de ser se for capaz de acrescentar a natureza. Os rostos e os corpos ou as entranhas da pintura não podem ser entendidos senão através da sua relação com a natureza da Pintura. Se Vasco já há muito recusara a armadilha fácil do lirismo, rejeita agora a confusão simplesmente naturalista. Pintar é criar outra natureza. Nessas condições, a pintura não pode deixar de constituir uma violência destinada a reforçar a violência de toda e qualquer natureza. O pintor é, por isso, aquele que recusa os pretextos falazes  para anunciar o fim da história: a tarefa do criador exige que se alarguem  o espaço e a função da criação. Ou melhor dito: o pintor é aquele que acrescenta natureza à natureza. Natureza plástica, como não podia deixar de ser. Mas haverá outra?

Nota: Texto publicado na exposição "Vasco, imagens íntimas" na sala de exposições do teatro de Vila Real em 2006