“até
ao esgotamento das horas“

André Laude 1972

De alguns anos a esta parte uma nova geração de desenhadores de humor se afirma em França: Desclozeaux, Barbe, Soulas, Bonnot, Cardon, Guitton, Kerleroux, Philippe, etc. São algumas dezenas que forçando penas e pincéis desmascaram e desmontam, põem a nu e denunciam uma realidade intolerável, seja ela de ordem social, moral ou metafísica. Cada um lutando na frente mais ameaçada.

Vasco, português de origem e chegado a França por força das “coisas da vida”, rapidamente apareceu à cabeça do pelotão donde citei alguns nomes.

Vasco e também meu amigo. De há muito. De quando realizámos juntos o jornal “underground” IX. Mas, por mais que me repita que este moço, mais pequeno que grande, barbudo, o nariz sob uns óculos redondos como era hábito nos membros da “intelligentzia” russa do fim do século, aparentemente exuberante, me é familiar, cada vez que um desenho seu me passa sob os olhos uma voz secreta confirma que não conheço verdadeiramente Vasco, que ainda existem zonas inteiras de paisagens que me escapam. Vasco vem desse país que deu o nome a Fernando Pessoa, o poeta dos “heterónimos”. Não estou longe em pensar que Vasco desenha porque ele próprio é habitado por duplos. Para os que lhe são próximos, a jovialidade aparece logo como véu lançado sobre uma angústia surfa, o riso escondendo mal uma ferida longínqua.

Há algo nele de “fatum” e de “saudade” e, se bem que afirmando uma presença de filosofia materialista, Vasco parece-me antes de tudo um poeta por evidências cruéis, um real que se ajusta mal aos seus sonhos, às suas fomes essenciais.

O humor de Vasco escapa às normas mais vanguardistas. Longe dos estereótipos que a “Free Press” e os epígonos do grande Crumb popularizam, longe deste humor não obstante francês, ele defende-se vestido de humor negro, e o desenho de Vasco faz ranger e interroga o espectador. Não se absorve a sua “leitura” à primeira vista.

Meticuloso e rigoroso, ele sabota lentamente a visão estabelecida, instala subtilmente os seus explosivos nas caves do real quotidiano. Em Vasco o instinto é dirigido sistematicamente pela vontade e a reflexão mental. Daí uma relativa lentidão de realização que não fará mais dele uma “vaca leiteira” dos “magazines” que esgotam a actualidade no espaço da vida. Vasco visa algo da permanência. Do efémero extrai o permanente, o exemplar.

Ele dá a ver o que nos toca e não vemos porque os nossos olhares estão sujos. Quando “caricatura” uma celebridade (Nixon ou Jimy Hendrix), ele “revela” literalmente o individuo em questão. Não se obstina a desmembrar a vítima. Reinventa-a, impondo ainda mais o génio adolescente de um, ou a sombria estupidez do outro. Estou convencido que há em Vasco um autêntico artista plástico concentrado, interiorizado. A composição, o uso que dá à tinta, por vezes em largas massas compactas, o refinamento do traço, provam, se necessário fosse, que a expressão “desenho de humor” não corresponde ao produto proposto.

O desenho de Vasco repõe em questão a configuração do universo que sustentamos por hábito ou facilidade. Ao mesmo tempo, repõe em questão o lugar que é dado ao ser humano no seio deste universo

É aqui que Vasco é profundamente subversivo.

Na verdade, ele é um obstáculo a um morrer adormecedor.