ao esgotamento das horas“
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Norberto Lopes 1982
Os desenhos de imprensa, desde que retratem com espírito os títeres da política e os desconcertos da história, ocupam o mesmo lugar de prestígio que se costuma atribuir aos textos literários de natureza satírica e irónica. Tanto o humor como sátira – já o notei em anteriores reflexões sobre o tema em Portugal – desempenham, quanto a mim, papel preponderante num país nostálgico e sorumbático como é o nosso, papel que se exerceu desde as cantigas de escárnio e maldizer até aos nossos dias.
É sabido que, entre nós, se recorre timidamente o “cartoon” político de actualidade. Os jornais continuam a evitar a “charge” política por um sentimento de medo que lhes ficou do regime deposto, em que era simplesmente proibida. Salazar não consentia que lhe deformassem as feições quando desenhavam a sua vera efígie. A censura tinha, a esse respeito, instruções rigorosas, que abrangiam até o nu artístico …
Na história do humorismo português abriu-se um hiato de meio século – o tempo que durou a ditadura – em que a imprensa se viu privada do comentário político através da caricatura. Francisco Valença, cujo centenário do nascimento passa ainda este ano, e Carlos Botelho ainda o praticaram mas com manifesta prudência. E os políticos que vieram depois do 25 de Abril, com raras excepções – Mário Soares declarou, há dias, que não se importava que lhe exagerassem as bochechas … - mantêm as mesmas susceptibilidades dos próceres da ditadura quando se vêem retratados por forma que não lhes agrada.
Vasco é um dos artistas portugueses que, na linha de Rafael Bordalo, de Celso Hermínio e de Leal da Câmara (para não entrar num universo exaustivo), tem feito o comentário político e intelectual da vida portuguesa e do panorama internacional, a par do retrato pessoal, com mais inteligência e mais flagrante oportunidade. Não deixou de ser ainda o revoltado, o inconformista, com o sentimento de independência que o levou, contra os desejos da família, a abandonar a Faculdade de Direito já depois de quatro anos de frequência por não se conformar com as incongruência do ensino escolástio, nem sentir vocação mesmo para as chamadas profissões liberais.
E quando Salazar teimou em contrariar os “ventos da História”, atirando o País para uma guerra absurda e inútil, Vasco não hesitou em expatriar-se, como tantos outros, para não tomar parte nela, exilando-se em Paris, onde colheu experiências proveitosas, desde o “Maio de 68” ao contacto com um meio civilizado, que lhe temperaram o gosto e lhe despertaram um sentido de criatividade com outro rigor e exigência. A sua vocação artística, que se revelara já em Portugal, desenvolveu-se e apurou-se, adquirindo um estilo próprio, inconfundível. Os seus desenhos de humor denunciam, sempre uma intenção inteligente e oportuna. O 25 de Abril tem nele um comentador sorridente e ousado. A sua crítica é frontal e não poupa os ridículos e as fraquezas das situações e as misérias dos bonifrates.
Após a Revolução dos Cravos, quando ao País foi restituída a liberdade, Vasco regressa a Portugal – teria valido a pena? -, deixando em Paris uma situação que lhe assegurava vida desafogada e aqui conquistou, rapidamente, um lugar de primeiro plano entre os desenhadores de imprensa. E aí temos, hoje, nesta acolhedora galeria do “DN”, que António Valdemar dirige com tanto acerto como conhecimento de pintura portuguesa, com duas dezenas de trabalhos. Fernando Pessoa é um dos seus motivos predilectos, que o solicita há cerca de 30 anos. Mas há grandes figuras literárias do século XIX que o apaixonam, como Camilo, Eça, Junqueiro, Herculano, Antero e outros que vieram depois, Raul Brandão, Jorge de Sena, Migueis …
Vasco subordinou a sua exposição ao título RIS(C)OS, ou seja RISCOS E RISOS. E se alguns dos seus desenhos não aprovam francamente o riso, a verdade é que todos despertam um espontâneo sorriso, neste país de mazombos onde, em geral, não se sabe sorrir e só a chocarrice obscena ou a graçola de mau gosto conquistam foros da cidade …
Nota: Texto publicado no catálogo da exposição "Riscos" na Galeria do Diário de Notícias em 1982